Publicado em 22/06/2025 às 14:30, Atualizado em 22/06/2025 às 13:17
A juíza ainda destaca a importância da conscientização da sociedade sobre os papéis de gênero
Mato Grosso do Sul registrou 16 feminicídios apenas no primeiro semestre de 2025, com o último caso ocorrido na noite de sexta-feira (20), em Maracaju. A vítima, identificada como Doralice da Silva, de 42 anos, foi esfaqueada e o principal suspeito do crime é Edemar Santos Souza, de 31 anos, seu companheiro. Ele foi preso e confessou o crime.
Este e os outros 15 casos de feminicídio, além dos incontáveis casos de agressão física, psicológica, patrimonial e demais tipos de violência contra a mulher registrados em MS, demonstram como as medidas protetivas ainda são falhas, assim como toda a rede de apoio e proteção à mulher, especialmente pela falta de fiscalização, fazendo com que ordens de restrição emitidas pelo Judiciário não tenham tanta efetividade como deveria,
De acordo com a juíza da 3ª Vara de Violência Doméstica de MS, que funciona dentro da Casa da Mulher Brasileira, Penélope Mota Calarge Regasso, apesar dos relatos mostrarem o contrário, em boa parte dos casos a medida é cumprida sem maiores intercorrências, se mostrando como eficaz na proteção de mulheres violentadas. Contudo, a magistrada reconhece que ainda há falhas e afirma que a vítima precisa colaborar com a fiscalização e denunciar caso a ordem de restrição seja quebrada.
“Acredito que elas [medidas protetivas] são muito eficientes, no sentido de prevenir e proteger a mulher. Mas, às vezes, o que precisa é a vítima denunciar um eventual descumprimento pelo agressor. Então, se ele continua procurando ela, passando na frente da casa dela, mesmo estando proibido de fazer isso, ela tem que ir numa delegacia e comunicar, porque, senão, não chega pra gente esse descumprimento”, explica Penélope.
Para a juíza, muitos casos de feminicídio podem ser evitados se as vítimas informarem que os agressores ainda têm contato com elas. Além disso, ela enfatiza que, nos casos em que o agressor não faz uso da tornozeleira eletrônica, apenas a comunicação da mulher é capaz de fazer com que medidas mais duras sejam tomadas em relação ao agressor.
“Pode acontecer dela estar com medo, mas, isso precisa ser informado. Por exemplo, em caso de invasão da casa dela ou se ela estiver em perigo, ela pode comunicar a Polícia Militar, que vai prender ele em flagrante. Se ela ficar com medo, tomamos todos os cuidados possíveis, como colocar o endereço dela em sigilo”, detalha a juíza, ressaltando que as fiscalizações também acontecem por meio da Patrulha Maria da Penha ou do Programa Mulher Segura, nas quais agentes da PM fazem visitas às mulheres protegidas por medidas de afastamento.
“Muitas vezes, a mulher não comunica, ou, quando comunica, é muito tarde. Então, é importante, se tiver um descumprimento dessa medida pelo agressor, ela comunicar imediatamente”, pontua.
E completa: “Se é para proteger, ela também precisa ajudar, no sentido de informar, porque são várias medidas protetivas que estão à disposição dela, inclusive disponibilizando acompanhamento policial para ela retornar à residência ou dando alojamento aqui na Casa da Mulher. Também há a possibilidade de endurecermos a medida e definir pela colocação de tornozeleira eletrônica pelo agressor”, disse.
Políticas públicas e socialização
Por outro lado, a juíza reconhece que também faltam políticas públicas para que mulheres saíam do ciclo de violência e não aceitem que seus agressores voltem para casa. O retorno do homem – que muitas vezes fica afastado da residência por força da medida protetiva – acontece, especialmente, quando a vítima é dependente emocional e/ou financeiramente do seu algoz. Em alguns casos, essa decisão de retomar o relacionamento pode estar ligada ao sustento dos filhos e outros fatores sociais e psicológicos.
“As medidas protetivas devem caminhar junto com a criação de políticas públicas, principalmente para dar às mulheres condições de serem inseridas no mercado de trabalho, para que elas tenham onde deixar seus filhos em segurança enquanto trabalham e tantos outros aspectos. Só as medidas protetivas não são suficientes”, afirma.
A juíza ainda destaca a importância da conscientização da sociedade sobre os papéis de gênero, a desconstrução da sociedade patriarcal e mudanças culturais para que mulheres tenham seu valor reconhecido e equiparado ao dos homens.
“Uma coisa essencial é a educação de gênero nas escolas, a fim de caminharmos para essa mudança cultural e social. Isso tem que andar ao lado da Lei Maria da Penha, das medidas protetivas, apoio para vítimas, para que elas consigam tocar a vida. Então, são vários fatores, não só a lei e a punição, envolve toda uma questão cultural e social também”, conclui.
Rede de apoio na internet
Entre todos os 15 casos de feminicídios que aconteceram em Campo Grande em 2025, o da jornalista Vanessa Ricarte, em fevereiro deste ano, foi capaz de jogar luz sobre as diversas falhas na rede de proteção às mulheres de violência doméstica. Diante do cenário desastroso evidenciado por meio deste caso, surgiu um grupo multidisciplinar denominado Justiça Delas, que recebeu o relato e pedido de ajuda de milhares de mulheres em alguns meses de existência.
Com um grupo no WhatsApp e página no Instagram, o objetivo é reunir os mais diferentes profissionais para fiscalizar a aplicação da Lei Maria da Penha e dar suporte às vítimas que buscam ajuda na Casa da Mulher Brasileira
De acordo com a Mara Dalila Teixeira Cardoso, que está como uma das idealizadoras da ação, o grupo de WhatsApp destinado para a orientação de mulheres reúne mais de 300 pessoas, entre sobreviventes, familiares de mulheres vítima de feminicídio e profissionais, que dão todo o apoio necessário, com advogadas, psicólogas e assistentes sociais.
Além de auxiliar com orientações, o grupo ainda reúne os relatos de várias pessoas que passaram pelo atendimento na Casa da Mulher Brasileira e na DEAM (Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher), a fim de realizar uma fiscalização e entender quais os pontos que ainda são necessários aprimorar para que o atendimento seja mais humanizado e acolha as mulheres de modo adequado.
O grupo ainda presta assessoria jurídica para mulheres que estão protegidas com medidas protetivas, que, como visto anteriormente, nem sempre são eficientes em garantir que os agressores não se aproximem das vítimas.
Entre os relatos que chamam atenção está o de uma mulher que não quis se identificar por questões de segurança, no qual ela relata a experiência desagradável que teve durante o registro de boletim de ocorrência contra seu ex-marido. De acordo com ela, o caso foi arquivado, porque não “era grave o suficiente”.
“Eu sofri e sofro até hoje com problemas psicológicos e psiquiátricos, pois entendi que para ter um processo em andamento contra o agressor, ele tinha que me esfaquear, quebrar um membro meu. Sair de lá com um papel dizendo que é medida protetiva não vai ajudar ninguém”, desabafa a mulher, destacando que o ex-marido a procurou mesmo sabendo da restrição judicial.
Conforme conta Mara, esta não é a única vítima que foi procurada pelo seu agressor, que descumpriu a medida de restrição. No grupo de apoio há casos de mulheres perseguidas das mais diversas formas, inclusive, por meio de mensagens no aplicativo do banco.
“O ex dela ficava mandando Pix de R$0,01 com mensagens ameaçadoras. Este é o nível de perseguição que muitas sofrem, mesmo tendo medidas protetivas”, conta, ressaltando que histórias como essas são inúmeras e chegam ao grupo todos os dias, lamenta Mara.
Como pedir uma medida protetiva?
Conforme as orientações da juíza Penélope Matos, a mulher que precisar de uma medida protetiva pode solicitar o documento em qualquer delegacia da cidade, mas, preferencialmente na DEAM, onde receberá todo o apoio especializado. As medidas de restrições também podem ser pedidas na Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul ou por um formulário online disponível no site do Tribunal de Justiça de MS.
O processo é analisado dentro de 48 horas e a vítima não precisa constituir advogado para fazer a solicitação.
Por Ana Clara Santos - O Estado Online