Publicado em 15/08/2016 às 07:00, Atualizado em 14/08/2016 às 23:57

Cientistas encontram bactéria que não pode ser combatida com antibiótico

Redação,

Recentemente descoberto na China e também encontrado em países da Europa, da Ásia e da África, o gene mcr-1, que causa resistência a uma classe de antibióticos utilizados justamente para tratar infecções por bactérias multirresistentes, foi identificado pela primeira vez no Brasil em cepas da bactéria Escherichia coli isoladas de animais de produção.

Os pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), responsáveis pela identificação da bactéria, também reportaram o primeiro caso de infecção humana no Brasil, em um hospital de alta complexidade em Natal (RN).

O paciente estava com uma cepa da bactéria portadora do gene e resistente a Colistina (polimixina E), um dos mais poderosos antibióticos, considerados como último recurso no tratamento de infecções produzidas por bactérias que não respondem a outras drogas.

“A aparição desse gene no Brasil pode contribuir para o surgimento de bactérias totalmente resistentes aos antibióticos, com risco de enfrentarmos uma situação similar ao que foi a era pré-antibiótica, quando doenças comuns, como uma infecção urinária ou um ferimento profundo na pele, levavam facilmente a óbito”, alertou Nilton Lincopan.

O pesquisador é o responsável pela pesquisa "Monitoramento de bactérias Gram-negativas multirresistentes de importância médica (humana e veterinária): impacto clínico/ambiental e desenvolvimento de alternativas terapêuticas e produtos de inovação tecnológica", realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Os resultados da pesquisa foram publicados nas revistas científicas Eurosurveillance, do European Centre for Disease Prevention and Control, e Antimicrobial Agents and Chemotherapy, da American Society for Microbiology.

SUPERBACTÉRIA

Descoberta em 1949, a produção de Colistina foi descontinuada entre a década de 1970 e o ano 2000 por sua elevada toxicidade, ficando o antibiótico restrito ao uso veterinário.

No início do século, entretanto, com a emergência de bactérias produtoras de enzimas responsáveis por provocar resistência a praticamente todos os antibióticos beta-lactâmicos, como as penicilinas, a Colistina voltou a ser utilizada como última alternativa terapêutica no tratamento de infecções produzidas por microrganismos multirresistentes, principalmente associadas a surtos de infecção hospitalar.

Por muito tempo, contou Lincopan, a comunidade científica internacional acreditou que o desenvolvimento da resistência bacteriana a Colistina seria um processo difícil.

“Porém, ao final do ano passado, um artigo alarmante foi publicado na revista Lancet Infectious Diseases, em que pesquisadores chineses descreveram a identificação de um novo gene (o mcr-1) que confere resistência contra polimixina E e polimixina B", indicou.

Ainda mais preocupante, de acordo com o pesquisador, foi a descoberta de que o gene é facilmente transferível de uma espécie bacteriana a outra por meio de plasmídeos, fragmentos de DNA extracromossômicos que podem se replicar autonomamente e que podem ser transferidos entre diferentes espécies bacterianas por conjugação – processo de reprodução das bactérias por meio do qual pedaços de DNA passam diretamente de uma para a outra.

O fragmento de DNA transferido se recombina com o material genético da bactéria receptora, produzindo novas combinações genéticas que serão transmitidas às células-filhas na próxima divisão celular.

IDENTIFICADA

Cepas bacterianas carregando o gene mcr-1 foram encontradas tanto em animais de produção como em seres humanos, levantando suspeitas sobre a existência de uma cadeia na disseminação da resistência a Colistina.

O ciclo dessa bactéria começa a partir do uso do antibiótico na alimentação animal, propagando-se para os animais abatidos, os alimentos derivados e o ambiente.

Diante da ameaça de que muitas infecções poderiam se tornar intratáveis, um alerta mundial foi emitido no início do ano pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), agência do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos.

Segundo Lincopan, papers de pesquisadores de diferentes países reportaram em seguida a identificação do gene mcr-1 em cepas de bactérias clinicamente importantes, como Escherichia coli, Salmonella spp. e Klebsiella pneumoniae.

“O aspecto mais assustador sobre o gene é a facilidade com que ele é transferido entre diferentes espécies bacterianas. Consequentemente, algumas bactérias hospitalares têm alinhado este gene junto a outros de resistência a antibióticos”, disse o pesquisador.

URGÊNCIA EPIDEMIOLÓGICA

De acordo com Lincopan, suspeita-se que a principal razão para o surgimento e a propagação do mcr-1 seja o uso exacerbado de Colistina na produção agropecuária, como promotora de crescimento.

Entretanto, a presença do gene também foi descrita em amostras de animais domésticos, alimentos e ambientes aquáticos, evidenciando a disseminação para diversos ecossistemas.

“No Brasil, no início deste ano, nosso grupo de pesquisa identificou pela primeira vez a presença do gene mcr-1 em animais de produção das regiões Sudeste (São Paulo e Minas Gerais) e Sul (Paraná e Santa Catarina), o que deve ser considerado uma urgência epidemiológica e um alerta para as implicações no agronegócio, visto que o país é um grande produtor e exportador de produtos de origem animal.”

Para os pesquisadores, os órgãos reguladores do setor deveriam reavaliar o uso de antibióticos como a Colistina.

Um plano de ação global contra o risco do colapso dos antibióticos, avaliOU Lincopan, deve incluir “o uso racional desses fármacos na saúde humana e animal, o reforço da vigilância epidemiológica e o estímulo de pesquisas na área, a educação da população e dos profissionais da saúde humana e veterinária, assim como fazendeiros e produtores, sobre o uso adequado de antibióticos e o desenvolvimento de novos compostos e ferramentas de diagnóstico”.

Os resultados da pesquisa podem ser acessados no artigo First Report of the Globally Disseminated IncX4 Plasmid Carrying the mcr-1 Gene in a Colistin-Resistant Escherichia coli ST101 isolated from a Human Infection in Brazil, disponível em aac.asm.org/content/early/2016/07/19/AAC.01325-16.abstract, e no artigo Silent dissemination of colistin-resistant Escherichia coli in South America could contribute to the global spread of the mcr-1 gene, em www.eurosurveillance.org/ViewArticle.aspx?ArticleId=22458.

Fonte: FAPESP