Publicado em 19/11/2025 às 14:04, Atualizado em 19/11/2025 às 18:27

A Cor que o Mundo Insiste em Não Ver

Crônica de Adriana Paioli

Redação,
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Divulgação

Há quem diga que o tempo cura tudo.

Mas há feridas antigas — tão antigas quanto o próprio país —

que ainda sangram silenciosas no coração de quem tenta existir

num mundo que insiste em não enxergar o óbvio:

a humanidade tem muitas cores, mas o valor é o mesmo.

Joana descobriu isso cedo demais.

Cresceu aprendendo que, para algumas pessoas,

sua pele falava antes de sua voz.

Falava mais alto que seus sonhos,

mais alto que sua educação,

mais alto que qualquer conquista.

Quando criança, perguntava à mãe:

— “Por que eles acham que eu sou diferente?”

E a mãe, cansada de respostas que o mundo não dava,

abraçava firme e dizia:

— “Porque ainda não aprenderam o que vale de verdade.”

Mas por trás do sorriso materno,

Joana sentia o peso da história que também não a poupou.

Anos depois, já adulta, trabalhava, estudava,

conquistava espaço na vida com esforço e fé.

E ainda assim, bastava um olhar torto, uma frase sussurrada,

uma dúvida injusta, e tudo voltava:

não era só ela.

Era o eco de séculos atravessando o corpo de cada negro que respira hoje.

Um dia, enquanto voltava do trabalho, ouviu alguém comentar:

— “Uma mulher dessa cor nunca deve ser a chefe…”

E aquilo veio como um tapa sem mão,

uma agressão vestida de normalidade,

uma violência que muitos fingem que não é violência porque não deixa marcas visíveis.

Joana seguiu andando.

Mas o pensamento ficou ali, atravessado.

Por que ainda precisamos provar tanto?

Por que a cor da pele assusta quem nunca sofreu nada por causa da dela?

Ao chegar em casa, sentou-se com o coração tumultuado.

E, como fazia desde pequena, buscou refúgio na lembrança da avó —

Dona Tereza, a sábia da família,

uma mulher que carregava a fé como quem carrega um escudo.

— “Minha filha, negro não é sombra.

Negro é raiz.

E raiz não teme tempestade.”

Joana respirou fundo.

E decidiu transformar sua ferida em ponte —

não muro.

Na manhã seguinte, voltou à escola onde lecionava.

Era professora não por acaso, mas por vocação:

sabia que a transformação começa nas mãos de quem ensina.

E ao entrar na sala, notou uma menina isolada,

olhando para o próprio braço como se ele fosse um erro.

Aproximou-se devagar.

— “O que houve, meu amor?”

A menina hesitou, mas os olhos entregaram a dor:

— “Me chamaram de carvão.

Disseram que minha cor não presta.”

Joana sentiu uma velha ferida reabrir —

mas também sentiu algo maior:

propósito.

Segurou as mãos da menina e disse:

— “Você sabe o que o carvão faz?

Ele acende o fogo.

Ele transforma frio em calor.

E sem ele não existe chama.

Quem te chamou assim achou que te ofendia,

mas só revelou o brilho que você carrega.”

A menina sorriu, tímida, mas o sorriso tinha luz.

E naquele instante, Joana entendeu que a luta dela não era só pelos adultos cansados de resistir —

era pelas crianças que ainda estão aprendendo a se amar.

Mas a crônica da vida não termina ali.

Porque o racismo não se resume a insultos.

Ele está na desconfiança automática.

No espaço negado.

No currículo descartado sem motivo.

Nas oportunidades que não chegam.

No medo de ser mal interpretado por existir.

Na força dobrada que um negro precisa ter para ser visto com metade da dignidade.

E enquanto alguns dizem que “não veem cor”,

Joana pensa:

O problema nunca foi a cor que enxergam,

mas o valor que escolhem dar a ela.

A noite cai.

Ela chega em casa cansada, mas com o coração vivo.

Olha para o espelho e se vê com orgulho —

não porque o mundo facilitou,

mas porque ela aprendeu a caminhar mesmo quando o mundo empurra.

E antes de dormir, abre a janela e olha para o céu.

As estrelas brilham na escuridão,

e ela sorri:

“Se a noite não precisa ser clara para ser bonita,

por que a pele precisaria?”

A madrugada continua silenciosa,

mas dentro dela, um pensamento brilha como farol:

A consciência negra não é um dia.

É um chamado.

É um lembrete.

É um grito que diz:

“Eu existo.

Eu importo.

Eu sou história, sou fé, sou força, sou vida.”

E nenhum preconceito do mundo

pode diminuir aquilo que Deus criou com tanto cuidado.