Publicado em 08/03/2020 às 13:30, Atualizado em 08/03/2020 às 11:13

Discurso machista marca governo Bolsonaro no Dia Internacional da Mulher

As frases são sempre de conteúdo misógino, sexista e machista.

Redação,
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Presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia no Palácio do Planalto 18/12/2019 REUTERS/Adriano Machado

Foto: Reuters

“Ela queria um furo. Ela queria dar um furo a qualquer preço contra mim”, disse o presidente Jair Bolsonaro aos risos, há pouco mais de duas semanas, referindo-se a jornalista da Folha de S.Paulo Patrícia Campos Mello. A frase machista e com conotação sexual repercutiu entre seus apoiadores, que partiram para as redes sociais com agressões verbais ainda mais ofensivas à repórter.

Na última semana, outra jornalista voltou a ser alvo de ataques do presidente. Vera Magalhães, editora e colunista do Estado de S.Paulo, foi chamada de mentirosa em entrevista na entrada do Palácio da Alvorada e durante uma transmissão ao vivo na página do Facebook do presidente da República. A fala de Bolsonaro também gerou reações violentas de seus seguidores contra ela.

“As frases são sempre de conteúdo misógino, sexista e machista. Essa coisa de dar o furo, que é um termo utilizado para descrever o trabalho de todo jornalista, virou algo com conotação sexual e sempre voltado à mulher, num contexto chulo, grotesco e que foi vocalizado pelo presidente da República, tanto contra a Patrícia, quanto contra mim”, conta Magalhães ao Terra.

Para a jornalista, a intensidade da violência e os insultos utilizados contra mulheres são diferentes dos que seriam voltados aos homens. “Não se vê esse tipo de ataque com jornalistas homens, por mais que as matérias deles incomodem. É algo muito voltado para mulheres”.

Incentivo do governo

Diante de uma sociedade patriarcal, dizeres sexistas estão enraizados em sua estrutura e acabam sendo reproduzidos e naturalizados, conforme explica a comunicadora social e especialista em neurociência, Gabriela Rodrigues, que criou o Guia da Linguagem Não Sexista na Publicidade.

“Assim como o machismo, outros comportamentos preconceituosos interligados, como racismo, homofobia e estereótipos de beleza que originam a gordofobia, têm origem estrutural, ou seja, que acontecem há um bom tempo e contaminaram a estrutura social em que vivemos”, diz.

Ainda que a diferença de tratamento entre gêneros não seja algo novo, é notável que no atual governo as ofensas estão cada vez mais enviesadas às mulheres.

“[O machismo] não é algo inédito para mim. No governo do PT cheguei a ser muito atacada e usavam sempre meu marido para me atingir. Não é uma exclusividade do bolsonarismo”, relembra Vera. “Mas a coisa ganhou uma outra escala, uma outra dimensão e uma virulência muito maiores neste governo. Porque passou a ser autorizada pelo próprio presidente e pelos filhos dele. Quando eles praticam, seus seguidores se sentem mais encorajados a fazerem o mesmo”.

Além dela e de Campos Mello, outras colegas de profissão como Míriam Leitão e Constança Rezende também já tiveram suas intimidades invadidas por apoiadores do governo que ultrapassaram os limites do debate, valendo-se de ameaças e ofensas contra elas, após serem proferidas pelo próprio Bolsonaro.

Os insultos não se restringem apenas à imprensa - categoria duramente criticada pelo presidente. Casos que ganharam destaque internacional, como os envolvendo a ambientalista sueca Greta Thunberg, chamada de “pirralha”, e Brigitte Macron, esposa do presidente da França Emmanuel Macron, que teve a beleza questionada por Bolsonaro, ilustram a conduta adotado ele e apoiado por seus eleitores.

O comportamento enfraquece o debate e luta pela igualdade de gênero. “Diante do conservadorismo do atual governo, há um retrocesso do ponto de vista de linguagem. Uma esfera social que trabalha para construir o futuro do País ocupada, em sua maioria, por homens brancos, héterossexuais e cis tende a estar fixada ao passado”, observa Rodrigues.

Exemplos

Frases que desqualificam a estética ou com conotação sexual são encontradas aos montes nos comentários de publicações feitas pelas jornalistas atacadas. Contudo, o preconceito nem sempre vem de forma tão explícita.

Um estudo realizado pela Babbel, uma empresa de educação alemã, foi divulgado na semana em que é comemorado o Dia Internacional da Mulher para destacar o machismo e sexismo expressado verbalmente no dia a dia.

Com o nome de “The patriarchal rooted in languages”, a pesquisa feita em 12 países analisou tendências linguísticas – tanto na literatura acadêmica quanto na imprensa e redes sociais – e mostrou, diante do contexto língua e gênero, a existência de certos padrões de frases e termos ainda muito repetidos mundo afora.

“Em todas elas, a mulher não é a dona e protagonista de sua própria vida. Ela é sempre colocada como um sujeito à mercê do homem”, afirma Camila Rocha Irmer, linguista da Babbel.

Irmer chama a atenção para um exemplo simples: “Você já reparou que o termo mal-amada, por exemplo, é usado apenas no feminino? Como se somente a mulher necessitasse de afeto para ser feliz. O termo também pressupõe que uma vida amorosa mal sucedida interfere em tudo o que a mulher faz. Um homem mal-humorado, por sua vez, parece poder ter mil razões para tal. Isso porque ele é o dono do próprio estado emocional – e nunca um mal-amado”, pontua.

Para que a mudança no discurso aconteça, é necessário entender que existe um erro e refletir sobre o que o motiva. "Quando a pessoa entende e percebe o que fala, está pronto e pronta pra começar a mudar o que foi catagorizado de maneira errada e passa a buscar a maneira correta de falar e agir", orienta a especialista em neurociência.

“Até agora, a história humana foi predominantemente escrita por homens. E ela reflete muito o poder que os homens sempre tiveram. Essas frases surgiram em um tempo em que mulheres eram vistas como um instrumento do poder masculino e como seres inferiores a eles. O reconhecimento de que isso não é mais válido nos dias de hoje se faz necessário. Precisamos nos conscientizar de que a importância de um indivíduo não deve estar relacionada ao seu gênero. Um dos processos fundamentais nessa reavaliação de atitudes é a linguagem – uma ferramenta poderosa para essa transformação”, finaliza Irmer.

Reprodução site Terra