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08/06/2022 às 15:00, Atualizado em 08/06/2022 às 11:59

Fome atinge 33,1 milhões de brasileiros, 14 milhões a mais em pouco mais de um ano

É o que aponta o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil

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Foto - Nelson Almeida

Cerca de 33,1 milhões de brasileiros passam fome atualmente. Em pouco mais de um ano, houve um incremento de 14 milhões de pessoas na condição de não ter o que comer todos os dias.

É o que aponta o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, lançado nesta quarta-feira. A pesquisa também revela que mais da metade (58,7%) dos brasileiros convive hoje com algum grau de insegurança alimentar. A situação leva o país para o mesmo patamar da década de 1990, um retrocesso de 30 anos.

A segunda edição da pesquisa mostra que, dois anos depois do início da pandemia, o país amarga o retorno ao Mapa da Fome da ONU - condição que havia deixado em 2014 - no seu pior nível.

Na primeira edição da pesquisa, em 2020, a fome no Brasil já tinha voltado para patamares equivalentes aos de 2004. Agora, com o agravamento da crise econômica provocado pela pandemia, o contingente de famintos retorna a níveis da década de 1990. Em 1993, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimou 32 milhões de brasileiros em situação de fome, embora sob outra metodologia.

O estudo sobre insegurança alimentar foi realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), com execução em campo do Instituto Vox Populi. O projeto conta com o apoio das organizações não-governamentais Ação da Cidadania, ActionAid Brasil, Fundação Friedrich Ebert Brasil, Ibirapitanga, Oxfam Brasil e Sesc.

As estatísticas datam de novembro de 2021 a abril de 2022, período em que o Auxílio Brasil, benefício que substituiu o Bolsa Família, começou a ser pago. Foram feitas entrevistas em 12.745 lares brasileiros, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, distribuídos nos 26 estados e no Distrito Federal. O nível de insegurança alimentar foi medido pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), metodologia também utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Vergonha de sentir fome

A pesquisa da Rede Penssan revela ainda uma dura realidade por quem convive com a fome no país: 15,9 milhões de pessoas, ou 8,2% das famílias entrevistadas, relataram sensação de vergonha, tristeza ou constrangimento pelo uso de meios que ferem a dignidade para conseguir colocar comida na mesa.

A fome é maior onde o chefe de família está desempregado (36,1%), tem emprego informal (21,1%) ou trabalha na agricultura familiar (22,4%). Nos lares onde o chefe da família trabalha com carteira assinada, a segurança alimentar chega a mais da metade (53,8%) dos domicílios.

Entre os entrevistados que relataram endividamento, quase metade (49,1%) convive com algum grau de restrição de alimentos ou fome. Quando considerados aqueles que precisam vender bens ou equipamentos de trabalho para comer, 48,7% passavam pela insegurança alimentar moderada ou grave.

'Patamar assombroso'

Para Renato Maluf, coordenador da Rede Penssan, o país atingiu um "patamar assombroso" quando se trata de fome. Ele lembra que são 14 milhões de novos famintos em pouco mais de um ano, o equivalente à cidade de São Paulo, que hoje conta com cerca de 13 milhões de habitantes.

Maluf, que também é professor do Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (DDAS) da UFFRJ, considera que a pandemia e a alta nos preços dos alimentos agravaram a situação de insegurança alimentar e fome no país, mas observa que esse cenário é o desdobramento de uma deterioração mais longa:

— Temos uma crise econômica e política que começou entre 2015 e 2016, além do desemprego crescente, precarização do trabalho, queda do salário mínimo e desmonte de programas. Houve ainda uma radicalização no governo atual com relação ao desmonte, que incluiu o fechamento do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, instituído em 1993) no primeiro dia do governo Bolsonaro.

Seis em cada dez famílias em insegurança alimentar

Além do patamar recorde de brasileiros em situação de fome, a pesquisa revela uma piora no nível de insegurança alimentar. Seis em cada dez domicílios no país não conseguem manter acesso pleno à alimentação. Há 125,2 milhões de brasileiros sob algum grau de insegurança alimentar. O número representa um aumento de 7,2% desde a edição de 2020, e de 60% em comparação com 2018.

De acordo com o IBGE, o conceito de insegurança alimentar abarca uma escala que vai desde aqueles indivíduos que têm risco de passar fome em um futuro próximo, passando pelos que restringem a quantidade de comida para a família até os que não têm alimento na mesa.

É uma situação como a de Sara da Silva Pestana, de 35 anos. Morando com os quatro filhos em uma casa de ocupação no Rio Comprido, zona norte do Rio, ela tem dificuldades para manter a despensa cheia.

Trabalhando há quatro anos como autônoma, fazendo alongamento de unha de 'acrigel' e cílios postiços, Sara sentiu o impacto na renda com a perda da clientela na pandemia e o encarecimento dos produtos. Depender de doações de cestas básicas e do auxílio do governo tem sido frequente para colocar comida no prato, e mesmo assim, não é garantia de uma alimentação farta, ela conta:

— Tem dia que falta comida, sim. A gente não passa fome, mas tem dificuldade de alimentação. Hoje, por exemplo, não tinha pão para comer, tive que fazer bolinho de farinha de trigo e dar para as crianças no café da manhã. Faltam açúcar, leite, biscoito… Na semana passada eu tive que deixar de comer para dar alimentos para as crianças. Ser mãe é isso. Muitas vezes eu deixo de comer para dar para eles. Vamos um vivendo um dia de cada vez. Pedindo para Deus prover.

Negros, menos escolarizados e mulheres são mais vulneráveis

Casos como o de Sara - que se declara parda, é mãe solo e estudou até o 1º ano do ensino médio - não são isolados. Segundo a pesquisa, a fome é historicamente maior nos lares chefiados por mulheres e com crianças menores de 10 anos, além de penalizar mais pretos e pardos e menos escolarizados.

Nas casas em que a mulher é a pessoa de referência, a fome já fazia parte de 11,2% desses domicílios em 2020. Em 2022, passou para 19,3%, quase o dobro. Nos lares que têm homens como responsáveis, a fome passou de 7,0% para 11,9% no mesmo período.

Em pouco mais de um ano, a fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos: de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. Na presença de três ou mais pessoas com até 18 anos no grupo familiar, a fome atingiu 25,7% dos domicílios. Nos lares com apenas moradores adultos, por outro lado, a segurança alimentar chegou a 47,4%, número maior do que a média nacional.

— Crianças se encontram sob risco grande quando vivem essa situação de fome pelo comprometimento que isso gera no seu crescimento e nas suas capacidades física e cognitiva. É preciso prestar atenção se o atraso ou falta de medidas para enfrentar o problema já não está trazendo algum comprometimento de uma geração para o futuro, que já lidou com maiores fragilidades na pandemia, e agora vive essa tragédia - diz Francisco Menezes, analista de políticas da ActionAid e ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar.

Também sofrem mais com a fome os lares em que os responsáveis possuem baixa escolaridade, com quatro anos ou menos de estudo. Em 2022, 22,3% dos domicílios com essa característica enfrentam a fome. Em 2020, esse percentual era de 14,9%. Na outra ponta, os chefes de família que tem escolaridade mais alta lidam menos com esse problema. O maior percentual de segurança alimentar é em domicílios cujos responsáveis têm mais de oito anos de estudo: 50,6%.

A fome também tem cor e se tornou ainda mais grave pelo recorte de raça nos últimos anos, segundo a pesquisa. Enquanto a segurança alimentar está presente em 53,2% dos lares onde a pessoa de referência se autodeclara branca, esse indicador cai para 35% quando os responsáveis são pretos ou pardos. Isso significa que 65% dos domicílios chefiados por negros passam por alguma dificuldade de pleno acesso aos alimentos.

Na comparação com a edição de 2020 da pesquisa, a fome saltou de 10,4% para 18,1% em 2022 entre os lares comandados por pretos e pardos.

Quando consideradas as grandes regiões do Brasil, os números mostram que a fome é maior no Norte e Nordeste. Respectivamente, 71,6% e 68% dos lares nestas regiões lidam com algum grau de insegurança alimentar – índices maiores do que a média nacional, de 58,7%.

No Norte, a fome fez parte da rotina de um quarto das famílias (25,7%). No Nordeste, esse percentual foi de 21%, enquanto a média nacional é de 15% e, no Sul, 10%.

O campo também sofre mais para colocar comida no prato. A insegurança alimentar fez parte de seis em cada dez lares nas áreas rurais. Destes, 18,6% das famílias convivem com a fome. Nem mesmo os lares de agricultores familiares e pequenos produtores de alimentos escapam dessa realidade: a fome atingiu 21,8% desses domicílios.

Salário mínimo é insuficiente para garantir segurança alimentar

O estudo mostra ainda que a obtenção de um salário mínimo por pessoa não é mais sinônimo de acesso à alimentação de forma adequada. Em 2020, brasileiros que moravam em lares com renda maior que um salário mínimo por pessoa não conviviam com a fome.

Agora, 3% dos lares nesta condição tem seus moradores em situação de fome, 6% convivem com algum grau de restrição de alimentos (insegurança alimentar moderada) e 24% não conseguem manter a qualidade adequada de sua alimentação (insegurança alimentar leve).

— O salário está perdendo a corrida da inflação. Nos lares com renda per capita abaixo de meio salário mínimo, ou então um quarto de salário mínimo, as carências são ainda maiores. A precariedade já é grande e a capacidade aquisitiva fica muito baixa, inclusive considerando que as pessoas são obrigadas a garantir moradia e outras despesas básicas — destaca Francisco Menezes, analista de políticas da ActionAid.

De acordo com a pesquisa da Rede Penssan, cerca de metade das famílias que relataram ter deixado de comprar arroz, feijão, frutas e vegetais nos últimos 3 meses anteriores à pesquisa estão em situação de insegurança alimentar moderada ou passam fome. Entre as famílias que deixaram de comprar carnes nesse mesmo período, 70,4% estão famintas.

Entre os que precisaram parar de estudar para contribuir com a renda familiar, são 55,2% nesses recortes mais graves de insegurança alimentar.

Conjunto de ações

Especialistas lembram que o Bolsa Família já lidava com a falta de correção em termos nominais, e agora o novo programa Auxílio Brasil permanece com valor insuficiente para apoiar as famílias vulneráveis quando se observam os preços.

Menezes chama atenção ainda para a fila de espera do programa, e considera equivocada a aposta do governo de incluir beneficiários por meio de aplicativo.

— Essa medida não resolve quando você têm situações de extrema pobreza que estão nos rincões mais afastados, em que se quer a população tem acesso à internet. Isso não pode se chamar de modernização do sistema.

Maluf pondera que é preciso um conjunto de ações integradas, já que não há um único instrumento capaz de equacionar a fome e a insegurança alimentar:

— O Brasil hoje carece de estoques de alimentos para regular preços e abandonou a política de agricultura familiar. Se quisermos enfrentar a promoção da segurança alimentar nas suas várias dimensões, precisaremos atuar no acesso aos alimentos e no enfrentamento à crise econômica, com ampliação do emprego e valorização dos salários. Também é preciso atuar sobre as desigualdades de gênero e raça, já que a sociedade brasileira é uma das mais desiguais no mundo.

Fonte - O Globo

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