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31/03/2024 às 14:00, Atualizado em 31/03/2024 às 11:50

Esquecer ou lembrar? Há 60 anos, Brasil iniciava uma ditadura militar

"Sabemos que um país sem memória é um país sem futuro, condenado a repetir os mesmos erros do passado”, diz especialista em Direito do Estado

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Militares durante manifestação estudantil contra a ditadura militar. Foto (arquivo Nacional) - reprodução Portal IG

“ É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução. A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação ”, é o que diz o início do Ato Institucional Nº 1, de abril de 1964.

Naquele ano, e permanecendo até 1985, a Ditadura Militar esteve instaurada no Brasil. O regime militar deixou um legado complexo e doloroso na história do país. O período foi marcado por repressão política, censura e violações dos direitos humanos. Os anos ficaram conhecidos como tempos sombrios e ainda ecoa na memória de muitos brasileiros.

A ditadura foi conduzida por presidentes militares que se sucederam de forma indireta, ou seja, sem voto popular e, portanto, fora dos contornos democráticos.

Repressão e censura

O regime militar originou-se de um golpe de Estado, no 31 de março de 1964, que depôs o presidente democraticamente eleito João Goulart. Os militares alegaram que interviram no poder em resposta a uma suposta ameaça comunista no Brasil. Como mostra o AIT Nº1, a posição sustentada pelos militares era de que houve uma revolução, e não um golpe de estado. Assim, eles assumiram o controle do país, instaurando um regime autoritário que durou mais de duas décadas.

Um dos principais aspectos da ditadura foi a repressão política. O regime não tolerava oposição e utilizava da tortura e da violência para silenciar os opositores. Muitos ativistas políticos, artistas, intelectuais e estudantes foram presos e até mesmo assassinados pelo regime. Além disso, a censura também foi uma ferramenta muito utilizada. Ela controlava a imprensa, a cultura e as expressões artísticas.

O milagre econômico

Enquanto o Brasil regredia socialmente, por conta das violações dos direitos humanos e da repressão política, houve um progresso em relação à economia do país no período da Ditadura Militar. O período ficou conhecido como "Milagre Econômico".

Na época, o Brasil era governado por autoritários como Emílio Garrastazu Médici, que proporcionou um momento de grande crescimento econômico, impulsionado principalmente pela industrialização e pelo investimento em infraestrutura.

Esquecer ou lembrar?

Seis décadas depois, com o Brasil novamente sob regime democrático e comandando pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), não haverá nenhum ato oficial em memória da Ditadura Militar. Isso porque o mandatário afirmou recentemente que não pode "ficar remoendo sempre" o passado ditatorial.

"O que eu não posso é não saber tocar a história para frente, ficar remoendo sempre, ou seja, é uma parte da história do Brasil que a gente ainda não tem todas as informações, porque tem gente desaparecida ainda, porque tem gente que pode se apurar. Mas eu, sinceramente, eu não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país para frente", disse em entrevista para o programa É Notícia, da RedeTV!.

Lula, que foi preso durante o regime militar, tem sido criticado pela posição. O próprio partido do mandatário, o PT, divulgou uma nota apoiando os atos que relembram a ditadura militar.

"O PT apoiará e participará dos atos e manifestações da sociedade previstos para os dias 31 de março e 1º. de abril em diversos pontos do país, além das atividades organizadas por sua fundação, a Fundação Perseu Abramo, sobre os 60 anos do golpe. [...] O Partido dos Trabalhadores reafirma seu compromisso com a defesa da democracia no país, valor presente no DNA originário do partido desde sua fundação", diz o comunicado da sigla.

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) já defendeu a tomada de poder pelos militares em 1964. Ele não chama o episódio de golpe e, durante seu governo, já liberou as Forças Armadas para comemorarem o 31 de março. Além disso, em 2019, ele exaltou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido pela Justiça como torturador da ditadura militar. Segundo Bolsonaro, o coronel foi um “herói nacional”.

O ex-vice-presidente da República e atual senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), que é general da reserva do Exército, também não classifica o ato como um golpe, mas sim uma revolução. Em uma publicação no jornal Correio Braziliense em 2023, ele defendeu o ato militar.

"Somam-se ataques às Forças Armadas desfechados nesta semana em mais um aniversário da Revolução de 31 de março de 1964", dizia o texto.

Em 2018, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, afirmou que não utiliza o termo golpe ou revolução. Em um discurso, o magistrado disse preferir usar a palavra "movimento".

“A data de 60 anos do Golpe Militar não é uma data comemorativa, mas um marco histórico. É preciso haver sensibilidade política para assinalar essa data na memória do povo, guardando a conotação correta e que não agrave sentimentos polarizados. Não há nada a se comemorar, mas apenas a se refletir”, diz Leonardo de Moraes, mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo.

“Outro ponto é lembrar que a luta pela verdade histórica não deve estar adstrita a uma única data, por se tratar de um trabalho investigativo constante e delicado, que ainda afeta muitas famílias e cujo objetivo maior é permitir-lhes o fechamento de lutos e ciclos, não a exposição pública de suas dores e seu uso político por este ou aquele governo”, acrescenta o especialista.

“Para se evitar uma ditadura, é preciso que as instituições de um país estejam fortes e estabelecidas, bem como o povo consciente da importância de uma democracia constitucional. Golpes com pretensões ditatoriais costumam vir dos ocupantes do Poder Executivo, que eventualmente alegam “amarras invisíveis aos seus projetos de poder” - na verdade, reclamam justamente dessa co-fiscalização que visa abusos e atos inconstitucionais. Acaso os demais poderes estejam enfraquecidos, ou haja sua aquiescência, expressa ou tácita, e o povo legitimar as atitudes golpistas por estar, de alguma forma, mesmerizado por esta ou aquela ideologia política radical, uma nova Ditadura pode teoricamente se estabelecer em nosso país, seja com caráter militar (1964/1985) ou sem caráter militar (Era Vargas)”, explica Leonardo de Moraes.

Lei da Anistia

A Lei da Anistia promulgada em 1979, durante a ditadura militar, perdoou “juridicamente” todos os envolvidos em “crimes políticos ou conexos”. Ficaram impunes agentes da repressão que cometeram torturas, assassinatos e desaparecimentos de presos políticos entre 1969 e 1979.

Ou seja, a lei buscava uma reconciliação nacional após anos de repressão durante a Ditadura Militar. A norma foi aprovada durante o governo do presidente João Baptista Figueiredo.

Décadas depois, a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) nº 320, movida pelo PSOL em 5 de maio de 2014, encaminhou o assunto da Lei da Anistia ao STF. Recentemente, o ministro Dias Toffoli, relator do caso, sugeriu a realização de uma audiência pública para debater amplamente o assunto antes de levá-lo a julgamento.

O cerne da questão jurídica é a interpretação das normas e princípios do direito internacional que afirmam que os crimes contra a humanidade não prescrevem e não podem ser perdoados por meio de anistia concedida pelo próprio Estado infrator. Como resultado, é esperado que talvez o Supremo Tribunal Federal reconheça que a Lei de Anistia não se estende a esses crimes.

“Tratou-se em verdade, de um último gesto de covardia cometido pelo Regime Militar, utilizando-se da lei para acobertar seu rastro infame. O desejo de revisionismo pelo Presidente do Supremo Tribunal (vale dizer, um dos três presidentes do país, conforme o desenho da Constituição, comentado anteriormente) segue uma tendência de apaziguamento social e consiste numa sinalização de maturidade de um Brasil democrático, capaz de retirar seus esqueletos do armário e enfrentá-los um a um, como expressão didática de Justiça para as novas gerações, única forma de colaborar para que não repitam os ciclos de abuso e violência cometidos por nossos antepassados”, afirma o mestre em Direito do Estado.

Em 1985, quando a Comissão Nacional da Verdade (CNV) apurou violações cometidas durante o regime militar, foi reconhecido a morte ou o desaparecimento de 434 pessoas durante o período.

“As comissões da verdade devem ter sua relevância entendida como perene e necessária para o desenvolvimento histórico e cultural do Brasil. Sabemos que um país sem memória é um país sem futuro, condenado a repetir os mesmos erros do passado”, diz Leonardo de Moraes.

Conteúdo - Reprodução Portal IG

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